Design e sociedade: uma intermediação pela via científica

Antonio Colchete Filho

Abstract


Ao abstrairmos a experiência existencial silenciosa, reflexiva e estática do nosso corpo, resta-nos estar em um mundo intermediado por coisas, sejam dadas ou postas pela natureza, sejam aquelas criadas pelo ser humano. Assim, reconhecemos o mar, o peixe e aperfeiçoamos as formas de pescar com uma série de artifícios que não nos foram dados a priori. Já há algum tempo algumas espécies de peixes são desenvolvidos em cativeiros e modificadas geneticamente. Corpos estáticos e em movimento, unificados, a serviço da criação. É aquela longa história que nos levou do abandono da vida na caverna à conquista do espaço sideral, no sentido literal e também poético.

Entre variados estímulos para criação desse tanto cotidiano ou espetacular, temos a chance de avançar e melhorar algo, seja um objeto, um setor ou segmento, seja um processo de produção para aprimorar uma performance e, quem sabe, nos ajudar a viver melhor. Há soluções domésticas, personalizadas, e há aquelas que interessam ou são valiosas para mais gente, que despertam interesse comercial e em larga escala.

O campo do design se ocupa substancialmente desse ato criativo e inventivo. Há quem desenvolva o medicamento, a embalagem do medicamento, o balcão da farmácia ou o site da empresa onde o medicamento será vendido, e assim por diante. Camadas e camadas criativas, normalizadas e em interação contínua com outros campos de conhecimento encarregados do ato criativo, no sentido mais amplo do termo, de criar. Para muitos, qualquer analogia com o ato do Criador não é vaidade.

Bem verdade que muito é feito ou produzido sem design, sem designer, sem estudo profissional, sem ciência. Mais até do que a sociedade, a própria ciência tem a responsabilidade pela validação do que é científico através da seriedade dos pares instituídos.

Na reunião de artigos selecionados para esta edição da Estudos em Design muito se pode conhecer do campo do design cientificamente, sobretudo, nas dimensões epistemológica e fenomenológica. Atos criativos e potentes em forma de artigos científicos que fazem avançar as ideias e o campo (trans) disciplinar da área de Ciências Sociais Aplicadas.

No artigo de Sérgio Luciano da Silva e Rita Aparecida da Conceição Ribeiro temos a oportunidade de acompanhar as reflexões dos autores sobre as possibilidades deconstrução do conhecimento a partir das premissas do que se estabelece como questão para a resolução de problemas em projetos e das instâncias presentes nos processos. Em texto criativo e rigoroso, somos conduzidos a pensar em imbricações filosóficas que expandem a própria noção de partida e chegada em termos do pensamento criativo. Balizados por teóricos contemporâneos-chave, como Popper e Kuhn, dentre outros analisados no manuscrito, os autores discorrem no texto sobre a possibilidade de revisão de conceitos que vimos operando nos últimos cinquenta anos e atentam para a urgência da contemporaneidade que impõe reflexões a todo instante, que nunca devem vir dissociadas da prevalência da experiência e natureza humanas.

Marli Teresinha Everling e Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens apresentam revisão de conceitos complexos em interação no campo de trabalho com impactos nas esferas individual e social. Com base em textos antológicos de Hannah Arendt, os autores aproximam a realidade da sociedade contemporânea, imersa em possibilidades tecnológicas ainda em construção, com a reflexão sobre a subjetividade em tempos de intensas relações de consumo material e simbólico. O texto é um convite para repensar a ação ética-política do design, dos designers e de todos nós frente às exigências e interesses do mercado em um mundo com recursos naturais em xeque.

O artigo de Zoy Anastassakis é um convite à reflexão sobre a atuação profissional no campo do design e nos modos de produção da área. Há cada vez mais exigências para convergir, confluir e compreender, com atenção e responsabilidade, o projeto e o devir. O artigo atenta para a prática de exercícios acadêmicos em campo, que enriquecem o processo técnico e criativo. A articulação da pesquisa em design com a pesquisa em antropologia possibilita refinar e articular melhor os resultados de ações que tenham como meios e fins pesquisas socialmente responsáveis. 

Luis Carlos Paschoarelli e Rodolfo Nucci Porsani desenvolvem metodologia própria, em estudo devidamente aprovado por comitês afins, para avaliar grupo focal composto por 60 jovens-adultos sobre o uso de realidade virtual. Os resultados cotejados em diferentes métricas indicam a discussão sobre os temas da realidade virtual e calcados na experiência do usuário para o aperfeiçoamento de métodos de projeto, bem como para a avaliação do que é desenvolvido pelo design no intuito de ter mais proximidade com o consumidor final.

Viviane Dos Guimarães Alvim Nunese Francesco Paolo Zurlo, a partir de revisão de literatura sobre temas que incluem desde a inovação social à missão universitária, apresentam artigo com resultados de pesquisa que destaca a importância do design estratégico como prática integrada de programa interdisciplinar universitário. Através da promoção de ações interdependentes, é possível ratificar um caminho para que instituições de ensino, sobretudo públicas, promovam transformações sociais mais amparadas e articuladas com a comunidade, em prol de resultados paradigmaticamente sustentáveis.

O artigo de Lindsay Jemima Cresto e Maureen Schaefer França aponta para um tema importante e instigante, que vem sendo mais discutido recentemente, mas ainda há pouco material levantado – a experiência da mulher na construção do campo disciplinar do design. As autoras apresentam como historicamente a mulher é referenciada em publicações, minoritaria e segmentadamente, reiterando um papel secundário e estereotipado que reforça o poder do jogo cultural dominante, que insiste no apagamento de personalidades femininas produtoras de conhecimento relevante. O artigo colabora em indicar a nós a direção para onde caminha esta revisão que se faz urgente. 

Baseado em uma consistente revisão sistemática de literatura (RSL), o artigo de Sílvia de Alencar Rennó e Maria Regina Álvares Correia Dias apresenta resultados sobre a iluminação noturna e o “Lighting design” como um todo. A partir da evidência de 50 artigos científicos de maior destaque em plataformas de pesquisa nas duas últimas décadas, as autoras consideram os temas que são discutidos e as lacunas que se fazem presentes nos textos selecionados como indicativos para reorganizar e fazer avançar a pesquisa desse tema no âmbito dos estudos e pesquisas em design.

Bárbara Fonseca Pinheiro Leão Tapajós, Fábio Manoel França Lobato e Kariane Mendes Nunes apresentam uma rica discussão sobre o papel da mulher através de um coletivo de produtoras de óleos vegetais amazônicos. Com o apoio de metodologia oriunda do “Design Thinking”, as autoras destacam a perspectiva da inovação e o reconhecimento do grupo profissional melhor capacitado em e para comunidades tradicionais e remotas.

Elisa Strobel do Nascimento discute em seu artigo tema que interroga os processos de produção no campo do design a partir da compreensão do que se entende por participação no processo, estendendo a pesquisa para o “design-mais-que-humano”, ou seja, valorando seres e elementos presentes no meio ambiente, em seu conjunto complexo. Através de revisão sistemática de literatura (RSL) a autora identifica 103 publicações que discutem terminologias e conceitos para intermediar a pesquisa em design com vistas a uma maior pluralidade de atores e totalidade ecológica.

Marcos Martins nos instiga a refletir em seu artigo sobre a nossa interface com as tecnologias presentes no mundo virtual, como o chamado “scroll infinito”. O autor percorre os caminhos históricos da inovação tecnológica que possibilita hoje a existência de subsídios fundamentais para basear o tema do design do campo visual interativo. Através de uma articulação teórica original com o pensamento antecipatório de Derrida, o artigo conecta práticas tecnológicas usuais com a construção da memória contemporânea, que impactam nas formas de reconhecimento de atributos que nomeamos como de ordem interior ou exterior, e que acabam por vir alterando cada vez mais nossas percepções e domínios íntimos e coletivos. 

Fechando os artigos desta edição, Mariana da Silva Lima, RennanGladson Sousa da Cruz e Tiago Barros Pontes Silva apresentam os resultados de pesquisa de iniciação científica integrada e interdisciplinar que explorou a realização de oficinas para discutir conceitos para o design de jogos como fomento à ampliação de recursos didáticos. As possibilidades e sínteses apresentadas a partir da prática estudada são um caminho para a discussão por profissionais do design que atuam neste setor que está em franco crescimento e diversificação. 

Por fim, fica o convite para a leitura e releituras dos artigos que sempre são inspiração para discutir as coisas da vida, do mundo e do design. A especificidade do campo é convite também para a aproximação com reflexões de fundo, mais amplas, o que não quer dizer necessariamente genéricas. À complexidade das discussões deve corresponder o nosso esforço de inter-relacionar os temas apresentados pelos autores desta edição da Estudos em Design com nossas áreas de atuação e experiências vividas coletivamente. Da liberdade acadêmica e intelectual podemos aproveitar bastante, como ato criativo fundante para avançarmos com o design e nos movermos socialmente, com ética e compromissos político, científico e ecológico claros, como o conjunto de artigos desta edição nos convida a pensar e agir.

 

Antonio Colchete Filho.

Arquiteto e Urbanista (UFRJ). Doutor em Ciências Sociais (UERJ). Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ/CNPq) – nível 2.


Refbacks

  • There are currently no refbacks.


Copyright (c) 2024 Antonio Colchete Filho

Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International License.

Revista Estudos em Design, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, ISSN Impresso: 0104-4249, ISSN Eletrônico: 1983-196X

Licença Creative Commons
Esta obra está licenciada sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.