Projetar o campo: historiografias, críticas e escritas do Design

Guilherme Altmayer

Resumo


Com mais de três décadas após a fundação de Estudos em Design, primeiro periódico científico brasileiro inteiramente dedicado ao campo, e os vinte e oito programas de pós-graduação em Design stricto sensu em operação no Brasil em 2025, é possível reconhecer certa maturidade e diversidade que caracterizam hoje a pesquisa em design no país; notadamente no que tange teoria, crítica e história do design, recorte da presente edição. Os dez artigos aqui reunidos - promovem investigações sobre origens institucionais, epistemologias alternativas, revisões historiográficas e novas abordagens ontológicas - são evidências do vigor de um campo que se consolida cada vez mais como espaço científico autônomo, mas que, simultaneamente, mantém um diálogo necessário com outras áreas do conhecimento.

Evidentemente o Design, em sua dimensão acadêmica, nunca foi um território isolado. Desde sua constituição como disciplina, dialogou intensamente com campos como filosofia, história da arte, sociologia, antropologia, tecnologia, estudos culturais e tantos outros. O que se observa hoje, contudo, é uma inflexão qualitativa nesse diálogo: o design não apenas importa teorias, mas também as produz; não apenas interpreta o mundo, mas o reelabora como objeto de reflexão histórica e crítica. A teoria e a história do design, outrora vistas como áreas de suporte, tornaram-se dimensões estruturantes da própria identidade científica do campo.

O artigo que abre esta edição, “Estudos em Design: origens e criação do primeiro periódico científico em design do Brasil”, de Eduardo Kasparevicis Ferreira, Marcos da Costa Braga e Sydney Freitas, revela que a criação da revista, em 1993, não foi um gesto isolado, mas parte de um movimento coletivo de docentes e pesquisadores organizado pela AEnD-BR. Junto a isso, a criação do primeiro programa de pós-graduação em Design na PUC-Rio em 1994, e a realização do primeiro Congresso de Pesquisa & Desenvolvimento em Design no mesmo ano, simbolizam a passagem do design brasileiro da prática profissional à produção de conhecimento sistemático.

Ao lado dessa história institucional, o campo se expande e se reconfigura por meio de novas propostas epistemológicas. O artigo de Juliana Savelli Graça, “Design de interiores entre gênero, corporeidade e resistência”, desafia as hierarquias tradicionais que relegaram o design de interiores a um papel marginal no interior da disciplina. O artigo parte do pensamento da autora e ativista estadunidense bell hooks para afirmar a margem como espaço epistêmico, no qual experiências sensíveis e subjetividades são reivindicadas como fundamentos legítimos de conhecimento.

Esse deslocamento é emblemático do momento atual da teoria do design: o reconhecimento de que o campo é constituído por múltiplas vozes, práticas e corpos, e que sua história não pode ser contada apenas a partir dos centros legitimados. Assim, uma perspectiva feminista e pós-estruturalista colabora na ampliação do horizonte epistemológico do design, questionando a centralidade em narrativas hegemônicas e propondo modos de saber e fazer que valorizam a interioridade e a experiência.

Já em “Como fazer história com o design? Tensões historiográficas na ‘fundação’ de uma disciplina (1934–1977)”, Wandyr Hagge e Daniel Portugal revisitam fundamentos historiográficos do campo. A partir da leitura de Clive Dilnot e Victor Margolin, os autores analisam o processo de consolidação da história do design como disciplina, questionando a predominância do modelo pevsneriano e propondo outras genealogias possíveis, inspiradas em Herbert Read, Lewis Mumford e Vere Gordon Childe.

Essa revisão configura um gesto político e metodológico. Ao reconhecer a pluralidade de modelos historiográficos, os autores reafirmam a importância da crítica e da diversidade interpretativa. Fazer história do design, aqui, não significa apenas reconstruir um passado, mas refletir sobre os modos e a partir de onde é feita.

A ampliação do escopo histórico do design se evidencia também nas pesquisas que recuperam trajetórias invisibilizadas. Em “A Dama dos livros em seda: Martha Pawlowna Schidrowitz”, Aline Haluch e Helena Ezequiel exploram a atuação de uma mulher exilada na produção editorial brasileira das décadas de 1930 e 1940. O estudo, baseado em fontes primárias e análise material, ilumina o papel de Martha Schidrowitz na história gráfica do país e evidencia as dinâmicas de gênero e autoria que marcaram a ausência de suas contribuições na história do design.

A investigação de Haluch e Ezequiel dialoga diretamente com outro trabalho presente nesta edição. Em “Resistência feminina, memória e produção gráfica na ditadura civil-militar”, Julia Navarro Lopes, Fernanda Henriques e Jade Samara Piaia investigam como artefatos gráficos produzidos por mulheres durante a ditadura civil-militar atuam como dispositivos de resistência e de preservação da memória coletiva. A partir de pesquisa em acervos e de uma abordagem baseada na micro-história, evidencia-se a importância de recuperar essas produções visuais silenciadas, destacando seu papel na reconstrução das histórias da resistência feminina.

A dimensão da memória aparece de forma contundente também em “Eugênio Hirsch: um acervo particular”, de Mirella Migliari e Pedro Campos dos Santos. O relato sobre a digitalização de um acervo gráfico privado reforça o papel do design na preservação do patrimônio visual e na constituição de arquivos digitais de acesso público. Integrado ao projeto Memórias do Design Carioca, o artigo demonstra que a pesquisa em design pode também configurar um gesto de preservação das materialidades que sustentam a história visual do país.

Se a história e a teoria nos permitem compreender o design como prática cultural e discursiva, a ontologia amplia esse horizonte para pensar o design como modo de existência. O ensaio de Giulio Palmitessa e Guilherme Meyer, “Design Estratégico e Tecnologia: uma análise ontológica a partir de cinco princípios críticos”, retoma a relação entre design e técnica, questionando a tendência do Design Estratégico de tratar a tecnologia apenas como ferramenta. Inspirados em Heidegger, Simondon e Yuk Hui, os autores propõem princípios críticos que visam recuperar a dimensão ontológica da técnica — isto é, compreendê-la como forma de revelar o mundo e de produzir sentido.

Essa abordagem reforça o caráter reflexivo de uma pesquisa em design que não se contenta com o instrumentalismo, mas busca compreender as implicações éticas, culturais e existenciais de suas práticas. O design, nessa perspectiva, é mais do que um meio de inovação: é uma forma de pensamento que articula materialidade, cultura e ontologia.

A questão do humano e de suas mediações aparece no artigo de Gustavo Machado e Felipe Kaizer, “A jornada histórica do usuário: de Frederick Taylor a Donald Norman”. O artigo traça a evolução histórica da figura do operário para a de “usuário”, lançando mão de estudos de eficiência no trabalho doméstico e fabril do século XIX até sua centralidade no design contemporâneo, marcada por ergonomia, cognição e usabilidade. Ao analisar a influência da computação, de laboratórios como o Xerox PARC e da popularização promovida pela IDEO, evidencia como o discurso do usuário se tornou um elemento estruturante do campo.

Já o artigo de Márcio Guimarães, Cristina Portugal e Otniel Altamirano, “Design, teatro e tecnologia na abordagem construtivista da revista MA (1916–1926)”, aborda o papel das vanguardas da Europa Central no início do século XX como espaços de experimentação estética entre arte, política e tecnologia. Ao analisar o diálogo entre design, teatro e movimento construtivista, os autores demonstram como o design emergiu não apenas como resposta industrial, mas como linguagem estética e política de transformação social.

Por fim, Lucy Niemeyer propõe em “Competências e responsabilidades para o design contemporâneo: Implicações para o ensino e para a pesquisa” uma reflexão sobre os novos desafios epistemológicos e éticos de uma área em constante transformação. Retomando a formação histórica do estatuto profissional do designer, a autora discute as transformações impostas pela globalização, pela inovação tecnológica e pelas demandas do design inclusivo e sustentável. Sua análise reafirma que o design, indissociável com o fazer e o estar do ser humano, carrega responsabilidades que ultrapassam a esfera do produto.

Reunidos, os textos desta edição configuram um recorte abrangente do estado atual da teoria e da história do design no Brasil, ainda que seja demonstrada uma predominância sul-sudestina em seu agrupamento. Evidenciam também um campo que, concomitante a sua institucionalização, se volta à crítica, a revisão e a abertura epistemológica. A teoria do design deixa de ser uma reflexão secundária, subordinada à prática projetual, e assume seu papel como espaço autônomo de produção de conhecimento — um lugar onde o design pensa a si mesmo e interroga seus próprios fundamentos.

Ao mesmo tempo, a história do design se afasta das narrativas lineares, canônicas e eurocêntricas para acolher múltiplas historiografias, vozes e práticas. Arquivos pessoais, trajetórias femininas, acervos digitais, práticas gráficas da resistência — todos esses elementos ampliam o repertório histórico e consolidam o design como campo interdisciplinar, capaz de articular técnica e cultura, materialidade e política, passado e futuro.

É fundamental reconhecer que a pesquisa em design não se restringe à aplicação de métodos projetuais, nem tampouco se mede somente por resultados formais ou produtos tangíveis. Ela constitui um campo próprio de problematização, análise e reflexão crítica, capaz de gerar conhecimento que ultrapassa o âmbito da solução de problemas para também colocar perguntas, ao se voltar à compreensão dos fenômenos culturais, sociais e históricos que o design produz e transforma.

Nesse contexto, a escrita acadêmica assume papel central. Escrever sobre design é mais do que registrar processos: é construir pensamento, formular hipóteses, tensionar conceitos e propor novas leituras para o campo. A escrita permite que o design se torne consciente de suas práticas e contradições, transformando a experiência em teoria e a teoria em nova prática. Ao ocupar o espaço da palavra, o design se insere na esfera do debate científico e cultural, afirmando-se não apenas como disciplina aplicada, mas como campo reflexivo e crítico.

O avanço da pesquisa em design deve, portanto, valorizar a escrita enquanto prática — uma forma de projetar ideias, argumentos e interpretações que dão sentido ao próprio fazer. A escrita é o laboratório onde o design experimenta consigo mesmo; é nela que se articulam as memórias, as narrativas e as projeções de futuro do campo.

A autonomia da pesquisa não é afastamento, mas condição para o diálogo: somente quando o campo se pensa criticamente é que pode reinventar suas práticas, seus métodos e suas linguagens. A teoria e a história do design, como evidenciam os artigos desta edição, são, nesse sentido, motores de transformação — lugares onde o design se torna capaz de narrar a si mesmo em relação, e de pensar o mundo que deseja construir. E é nesse espaço de reflexão e escrita que o campo busca não apenas sua autonomia científica, mas também sua relevância cultural e social: pensar o design é, afinal de contas, projetar o pensamento.

Guilherme Altmayer


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Revista Estudos em Design, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, ISSN Impresso: 0104-4249, ISSN Eletrônico: 1983-196X

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