Primeiro colocar a máscara em si, para depois ajudar os outros
Resumo
Escrever o editorial de apresentação de um dos números da Revista Estudos em Design é uma tarefa que exige uma reflexão prévia sobre o significado desta publicação, sua trajetória e avanços recentes e, sobretudo, sobre as perspectivas para o futuro, não somente do periódico, mas principalmente do campo disciplinar ao qual EED deve a sua existência.
Trata-se de uma reflexão impossível de ser feita conforme o merecimento, dada a desproporção entre a densidade das questões, a exiguidade de linhas e o pouco tempo para a tarefa; mas sobretudo, dada a visão parcial e incompleta de qualquer um de nós, e em particular da signatária deste texto.
A Revista Estudos em Design completou três décadas de atividade, e acaba de receber a classificação Qualis A1 da CAPES. Este último fato, que já foi celebrado em editoriais precedentes, equivale ao reconhecimento da maturidade científica, não somente da revista tomada pela sua “identidade de marca”, mas sim do conjunto de pessoas reais que são responsáveis pelo sucesso da empreitada.
Aqui, merecem aplausos óbvios os autores e autoras, avaliadores e avaliadoras de EED, imbuídos, a cada missão, de suas respectivas responsabilidades. Merece também destaque a equipe que realiza as tarefas cartoriais, invisíveis e fundamentais, sem as quais não teríamos, periodicamente, novas edições, novos textos e novas perspectivas de compreensão de nossa profissão e campo cultural, bem como dos fenômenos da cultura material projetada, os quais são tão ubíquos e variados que chegam a passar despercebidos, como se o entorno material artificial fosse a própria natureza que sempre esteve ali.
A solidez da Revista Estudos em Design é fruto, assim, não somente do trabalho de pesquisadores e articulistas, mas também de um contínuo e árduo trabalho, ao mesmo tempo social, intelectual e administrativo, que organiza a produção escrita do campo, recebendo submissões, designando avaliadores, comunicando veredictos, controlando prazos, e executando as demais tarefas que precedem cada novo número, numa gestão incessante de informações e pessoas.
Tais palavras têm o objetivo não somente de enfatizar (e agradecer) o trabalho editorial da revista (que provavelmente não é percebido pela maioria em sua real complexidade), mas também de introduzir, por comparação, um conjunto de preocupações amarguradas, relativas ao campo profissional que compartilhamos, a respeito de diversas situações que nos cercam, e que talvez estejamos mantendo na invisibilidade.
Refiro-me a aspectos e questões do campo do design que, neste momento específico da história brasileira e mundial, estão ainda por ser apontados, nomeados e discutidos, e que estamos ignorando por falta de atenção, oportunidade, coragem ou iniciativa, ou pelo apego seletivo aos sucessos individuais e coletivos angariados até agora.
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Há muitos anos observo que há uma forte associação entre a disciplina e a prática à qual chamamos “design”, de um lado, e uma clave heroica, benéfica e universal, de outro. Segundo tal entendimento, “o design” (quase sempre referido como um ser individual portador de consciência, e não como o nome de uma profissão e prática cultural) seria capaz de enfrentar e neutralizar, quase que de “peito aberto”, aos estados gerais de injustiça, crise ou caos (social, material, ambiental, alimentar, cultural, econômico etc).
Muitas vezes, esta associação (ao meu ver, equivocada) é apresentada aos jovens estudantes como intrínseca à sua escolha profissional, condenando-os à crença de que, como designers, serão arautos de uma “causa”, e também portadores de poderes demiúrgicos, intrínsecos à especificidade da carreira que escolheram, sendo um de seus deveres futuros apresentar e esclarecer continuamente “ao mundo” que o design existe para “melhorar a vida das pessoas”, de modo que “o mundo” os autorize a cumprir a suposta missão de inverter a polaridade de esquemas humanos degradantes ou degradados.
Caso este ponto de vista seja compartilhado por quem está lendo este editorial, convém refletirmos se não é chegada a hora de abandonarmos a ideia do design-demiurgo (que talvez tenha origem no Manifesto da Bauhaus), para que nos dediquemos, por algum tempo, a uma impiedosa autoanálise coletiva, começando pelo espaço social que detém a maior “densidade populacional” de nosso campo no Brasil: os cursos de graduação em design.
Afinal, o ambiente da pesquisa e da pós-graduação deve sua existência ao sistema da graduação, sobre o qual é provável que saibamos atualmente muito pouco. Dentre muitas questões de maior relevo, interesso-me especialmente por saber qual tem sido o destino profissional dos graduados, ao longo de gerações sucessivas, principalmente nos casos daqueles que não se vincularam ao sistema institucional da ciência (ou seja, à docência, à pesquisa e à pós-graduação), seguindo suas carreiras no chamado “mercado de trabalho”.
Do meu ponto de vista (que insisto ser individual e incompleto), tenho a impressão que a maioria dos egressos da graduação em design, de diferentes gerações, não encontrou, na formação universitária recebida, um sustentáculo forte o suficiente para se colocar no mercado de trabalho de maneira confiante, sendo até mesmo incapazes de reconhecer as suas aptidões individuais específicas, com vistas a potencializá-las, e suas fragilidades formativas, com vistas a superá-las. Tal impressão se acentuou, certa vez, numa recente conversa informal com um colega de graduação que me confessou que não carregava em si o sentimento sólido de “ser um profissional”.
Esta impressão isolada pode ser apenas um equívoco da minha parte, mas pode ser a ponta de um grande iceberg que precisa ser investigado, especialmente porque parece ser frequente demais, em nosso meio profissional, a necessidade de esclarecer a quem quer que seja sobre “a contribuição do design” para uma infinidade de situações. Seria interessante observarmos se a mesma necessidade de autoafirmação é sentida em outras carreiras de projeto, tais como a engenharia, a arquitetura ou a publicidade.
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Dada a amplitude e complexidade dos pontos aqui colocados, entendo que é urgente que os cientistas do campo passem a tomar as condições reais de atuação profissional dos designers como tema de investigações, mas não com vistas a reafirmar as supostas “virtudes” do design, e sim com vistas a conhecer aspectos concretos da nossa realidade disciplinar no Brasil, especialmente no mundo do trabalho fora do ambiente da universidade. Entendo que isso só é possível mediante uma grande pesquisa censitária, cuidadosamente elaborada, e que incida sobre as diversas gerações de profissionais que vêm se sucedendo, nas diferentes regiões do país, buscando conhecer e correlacionar aspectos diversos, dentre os quais destaco:
1. Investigar a origem socioeconômica e a experiência cultural dos integrantes de nosso campo, anteriores à entrada na graduação (acesso ao estudo de idiomas estrangeiros, intercâmbio em outros países, aulas de teatro ou dança, visitas a museus, prática de esportes, hábitos de leitura);
2. Investigar os destinos profissionais dos integrantes do campo após a conclusão (ou interrupção) de seus cursos, especialmente no que se refere à evolução das remunerações durante as trajetórias profissionais, às mudanças de carreira ou atuação em subempregos e demais variantes do problema;
3. Investigar qual o nível e as conquistas da organização sindical desta profissão no Brasil;
4. Investigar a autoimagem dos profissionais da área do design e sobre os fatores aos quais atribuem o sucesso ou o fracasso de suas trajetórias profissionais.
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O pressuposto das preocupações aqui registradas reside na minha desconfiança de que, no âmbito das instituições de educação em design, pode estar vigorando uma separação qualitativa entre graduação e pós-graduação, e entre a formação para a pesquisa e a formação para o mercado. Trata-se de uma desconfiança baseada na observação de evidências que, apesar de insuficientes, são bastante preocupantes. Dentre elas, destaco um maior interesse docente nos assuntos ligados à pesquisa, iniciação científica e pós-graduação, do que nos assuntos ligados à graduação e à preparação dos estudantes para o mercado de trabalho. Talvez porque os temas ligados ao universo acadêmico sejam mais fáceis de manejar (pois são restritos ao ambiente protegido da universidade) e ensejem maior prestígio.
Destaco ainda a diferença entre os relatos informais dos estudantes que atuam dentro da universidade (na iniciação científica, em estágios internos ou outros espaços protegidos da instituição), e aqueles que fazem estágios no mercado de trabalho (as empresas), exercendo atividades muitíssimo diferentes daquilo que aprenderam nas salas de aula.
Não estou propondo aqui que devemos escolher entre um ou outro modelo educacional (um deles “pró-mercado” e outro “pró-pesquisa”), mas que verifiquemos com cuidado o estado atual da questão, realizando, por exemplo, uma grande pesquisa sobre os estágios ou a prática dos “freelas”, pois em tais situações poderemos verificar em que medida as supostas potencialidades demiúrgicas do design são praticadas nos ambientes não controlados pela academia.
As perguntas acima são apenas sugestões do que acredito que é preciso ser investigado. A elas, eu acrescentaria indagações sobre o atual estado curricular da graduação em design, no que se refere à consideração do design como ciência, do design como arte, e ainda das relações desta disciplina e prática com a comunicação e os estudos de linguagem, com a moda ou com as engenharias.
Este é um ponto especialmente importante para a comunidade científica reunida em torno da Revista Estudos em Design, pois embora vários de nós cultivemos uma admirável erudição individual a respeito de temas muitíssimo específicos, a minha observação cotidiana sugere que graduandos em geral (e até mesmo docentes) não estão preparados para dar explicações básicas sobre as conexões entre design, arte, ciência e comunicação, mesmo que coloquialmente, à mesa do bar, por meio de exemplos de artefatos corriqueiros que nos rodeiam.
Também merece ser tema de nossa reflexão o quanto sabemos discutir, no ambiente da graduação, sobre as diferenças entre “metodologia de projeto” e “metodologia científica”, ou sobre as diferentes funções do desenho em um projeto, ou ainda sobre os softwares cujo conhecimento é necessário às diversas práticas de projeto. A minha impressão geral é que o “sucesso” da educação em design em nível de graduação vem sendo medido, há décadas, por meios do acúmulo de “peças de exposição”, ou seja, de protótipos, modelos, maquetes, esboços, desenhos, pranchas ilustradas e demais materiais gráfico-expressivos, “bonitos” o suficiente para que sejam mostrados em eventos festivos destinados a causar a admiração de um público que, no fundo, não entende muito bem o que está aplaudindo. O que fica escondido debaixo de tal acervo é a real autonomia intelectual de cada jovem profissional para conduzir projetos complexos no mundo real, para elaborar propostas comerciais sólidas ou para montar uma equipe de projetos com expertises adequadas a cada nova proposta de trabalho.
Por fim, apresento dois pontos panorâmicos a respeito dos quais eu rotineiramente me indago: (1) quais são os autores e obras de referência que todos os estudantes e docentes de design devem (ou deveriam) ler ou ter lido? (2) Quais são os conceitos fundamentais que compõem o aparato nocional que todos os integrantes deste campo profissional devem conhecer e saber discorrer a respeito?
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Em meu entendimento, as questões que proponho aqui não podem ser investigadas por um único pesquisador (numa tese ou dissertação, por exemplo), e nem mesmo por um grupo de pesquisas isolado, mas sim por um robusto consórcio acadêmico interinstitucional e interdisciplinar, já que problemas em questão talvez sejam bastante familiares para sociólogos, antropólogos, economistas, e/ou historiadores, os quais acredito estarem acostumados a investigar verdades desagradáveis sobre a sociedade ou seus próprios campos disciplinares, sem cair na tentação do autoelogio.
Embora eu tenha mencionado acima que minhas preocupações são amarguradas, este editorial não tem a finalidade de causar amargura aos leitores da Revista Estudos em Design, mas sim chamar a atenção para o necessário trabalho de autoconhecimento coletivo, na medida em que estamos reunidos sob um campo disciplinar que só tende a crescer, e que efetivamente oferece respostas positivas a uma série de problemas do mundo. E este processo de autoconhecimento coletivo só pode acontecer dentro do ambiente da pesquisa e da pós-graduação, com resultados compartilhados em espaços tais como EED.
Afinal, as profissões projetuais e liberais (e não somente o design) podem até ser as grandes operadoras do mercado, das grandes corporações, do poder ou do grande capital, mas também são as grandes operadoras da autonomização produtiva e econômica de pequenos produtores, da melhoria do desenho das cidades e dos serviços públicos, da introdução de processos produtivos menos danosos ao meio-ambiente e da criação das bases materiais de estilos de vida futuros que sejam mais sustentáveis e razoáveis, dentre outras mudanças civilizatórias.
Em última instância, todas as profissões projetuais e liberais (e não somente o design) são as grandes operadoras dos direitos humanos, cada vez que um novo artifício (seja um produto, uma lei, um ambiente, um serviço, um protocolo ou um sistema) garante a realização prática de qualquer um dos trinta artigos que compõem a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esta afirmação não é suficiente, contudo, para sustentar o slogan segundo o qual “o design melhora a vida das pessoas”, pois, além desta ser uma enorme simplificação, o “design” não faz nada sem seus agentes concretos: os projetistas, sejam eles graduados ou não, integrantes da pós-graduação ou não, pesquisadores ou não.
Fundamentalmente, as pesquisas sugeridas por mim neste editorial são atravessadas pela necessidade do autoconhecimento coletivo, e dizem respeito às condições concretas dentro das quais atuam os membros do grande grupo social reunido especificamente em torno da práticaprofissional do design. Enfatizo aqui a ideia de prática profissional, para que ela seja tomada em sua especificidade estatutária, civil, comercial, contábil e legal, não devendo ser confundida com o exercício do design como potencialidade antropológica geral.
O registro de tais propostas me pareceu oportuno a este editorial de EED, especialmente pelos trinta anos da revista e pela atribuição da classificação Qualis A1 pela CAPES, pois entendo que, embora o reconhecimento da maturidade científica tenha sido atribuída à Revista Estudos em Design (e não à totalidade dos integrantes do campo do design), essa conquista tende a nos ofuscar individualmente, fazendo-nos acreditar que somos todos merecedores de tal comenda, pelo fato de termos publicado uma ou outra vez nestas páginas, ou por fazermos parte de um programa de pós-graduação em design, ou ainda por estarmos mergulhados num ambiente supostamente superior em termos intelectuais e morais, no qual se afirma o tempo todo nosso compromisso com a ciência e com a evolução da humanidade.
Por outro lado, embora a classificação CAPES Qualis A1 seja um feito específico da Revista Estudos em Design (mediante, é claro, o trabalho de todos os seus colaboradores individuais), esta conquista não deve ser só um motivo de celebração, mas um fator a nos impulsionar cada vez mais na direção do aprimoramento desse espaço profissional, especialmente em prol de seus integrantes mais jovens e desprotegidos (os estudantes de graduação), de maneira a garantir melhores condições futuras, para que a nova geração de profissionais em formação possa desempenhar seu papel público com conhecimento e responsabilidade, mas também com segurança, orgulho, além do devido reconhecimento social e econômico, independente do grau do diploma que venham a portar.
Ana Claudia Berwanger
Universidade Federal do Espírito Santo
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Revista Estudos em Design, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, ISSN Impresso: 0104-4249, ISSN Eletrônico: 1983-196X
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