Editorial

Renata Cadena

Resumo


Não é à toa os últimos cinco editoriais desta revista colocam em pauta o momento de crise que, infelizmente, ainda estamos vivendo. Por sua propagação invisível e imperceptível, o coronavírus é um ente mais perigoso que as bestas gigantes, dentadas, descritas nas mitologias­. Contudo, como ressaltaram meus colegas desta revista e como comprova a prazerosa curva decrescente nas mortes do país em novembro de 2021, as ciências têm se mostrado a principal via para lidar com o que, de tão sorrateiro, tornou-se inescapável.

 

Também não é por acaso o “ainda” do parágrafo anterior. Apesar da perspectiva otimista, é preciso cautela e ainda mais atenção ao conhecimento científico. A distribuição desigual da Ciência pelo mundo tem permitido a aparição de novas versões do vírus que vêm sendo nomeadas com letras gregas – o que indireta e morbidamente remete a tragédias. Neste momento, aliadas às ciências naturais e da saúde, empenhadas em criar e produzir vacinas contra o patógeno, vemos a importância das ciências sociais para entender os mecanismos das fake news e da recusa ao conhecimento científico, bem como das engrenagens que fazem tão desigual o acesso de povos diversos à vacina, ainda que seja reconhecidamente sabida a natureza sistêmica e global da pandemia.

 

Por isso que nós, numa revista da área do Design, estamos nos vendo repetidamente falar sobre uma doença. Porque o coronavírus gerou tanto uma pandemia dependente do contato social, como inclusive que se fortaleceu por imbróglios sócio, político, econômico e culturais latentes antes de seu surgimento. Também devido ao caráter aplicado da ciência que há 25 anos a Estudos em Design promove. Afinal, a perspectiva multidisciplinar, experimental e socialmente sensível da nossa área pode contribuir com a superação dessa crise que é, antes de tudo, questão social e coletiva.

 

Nesta edição, a Estudos em Design traz doze oportunidades de repensar a prática do projetual do Design e, consequentemente, a prática social, contribuindo para a sedimentação de reflexões nacionais sobre a área. Em comum está uma perspectiva criativa aplicada aos problemas em questão, buscando conhecimentos de campos diversos para incorporar ao multidisciplinar campo do Design. São notáveis também as trocas interinstitucionais entre pesquisadoras e pesquisadores, que são de instituições brasileiras e internacionais; federais, estaduais e privadas; e de faculdades, institutos e universidades.

 

Nos trabalhos aqui elencados as autoras e os autores estão ora colocando o usuário no centro do projeto, em especial aquele usuário que é subvalorizado, ora estão ressaltando a indissociável relação do Design com o poder, indicando a necessidade de posicionamentos políticos, ora estão sugerindo aprimoramentos para práticas profissionais – delineando três caminhos em que, particularmente, alinho os textos deste volume.

 

O primeiro está na atenção aos corpos humanos e como eles influenciam a relação com os artefatos. Desde perspectivas mais abrangentes, como em A influência..., até os cuidados com necessidades específicas de grupos minoritários e geralmente desfavorecidos, como as pessoas social e culturalmente marginalizadas (Mobiliário Urbano...), pessoas com discalculia (Recomendações para...), pessoas LGBTQIA+ (Design é...), pessoas surdas (Design de recursos...) e deficientes visuais (Vendo pelo...). A ênfase desses trabalhos é mais do que o aprimoramento da prática do Design a partir das prescrições que apontam para a essencialidade de considerar os variados vieses do ser humano ­­– tornando ergonomia e acessibilidade indissociáveis do projeto. É, sobretudo, o reconhecimento do campo do Design de que a vivência democrática depende sobretudo da atenção às necessidades dos mais diferenciados grupos, sobretudo aqueles que merecem atenção específica.

 

O reconhecimento dos imbricamentos do Design com a vivência política é visto numa segunda mirada para os textos desta edição. Mobiliário Urbano... fala sobre as relações de poder do planejamento do espaço com os indivíduos que dele usam, valorizando o envolvimento de designers nessa conjugação. Design ativismo... contribui para a sedimentação teórica de uma correlação percebida como urgente para o nosso campo: a do Design com a da prática do ativismo. Design é coisa... marca a posição de que também o fazer Design tem o compromisso de dar poder a corpos dissidentes. E, por fim, falando dos móveis exclusivos para a casa da presidenta ou presidente do Brasil, O mobiliário... lança luz simultaneamente sobre a prática nacional de mobiliário modernista, o trabalho de uma designer mulher e o patrimônio dessa construção arquitetônica concebida numa cidade-símbolo dos novos rumos engendrados para o país.

 

A terceira linha marca o compromisso com perspectivas autônomas e renovadoras sobre a própria área, frequentemente inspiradas por conhecimentos advindos de áreas com que o Design tradicionalmente faz mais ou menos interações. Design Thinking... traz conhecimentos do campo da gestão para aprofundar esse caminho que, admitamos, tem popularizado valores e perspectivas da prática projetual do Design. Em Censo Demográfico..., conhecimentos da pesquisa social são usados para trazer reflexões na avaliação da experiência do usuário. Práticas criativas... sugere incorporar conhecimentos da escuta psicanalítica para a análise simbólica perpetrada no estágio da concepção em projetos de design. Já A estruturação... não olha pra fora, mas sim para dentro, para a práxis nacional do Design de fontes de texto, propondo uma forma customizada para o ensino desse projeto tão particular e complexo.

 

A seguir, elenco individualmente e em ordem de apresentação o que é possível encontrar neste terceiro número do volume 29 da Estudos em Design.

 

No artigo A influência das affordances no posicionamento das mãos para abertura de embalagens de água mineral, os pesquisadores Gabriel Bonfim (Universidade Federal de Uberlândia), Fernando da Silva (Universidade de Lisboa) e Luis Paschoarelli (Universidade Estadual Paulista) investigaram aspectos ergonômicos da manipulação de embalagens de água mineral. Nesta pesquisa de fôlego, com 240 participantes do Brasil e de Portugal de diversas faixas etárias, foram avaliadas 10 embalagens de características semelhantes, sendo metade de cada país. Pensando que o conceito de affordances, cunhado pelo psicólogo americano James Gibson nos anos 70, dá conta das sugestões que o meio fornece para as ações possíveis do usuário, os resultados obtidos na avaliação dos três pesquisadores trazem contribuições para a compreensão de como forma e centro de massa afetam a manipulação de objetos e para a atividade projetual de embalagens.

 

No artigo Mobiliário urbano e vandalismo: tópicos para pensar o design, Fernando Costa, Karine de Jesus e Antonio Filho, da Universidade Federal de Juiz de Fora, mostram que, de tão multifacetada e ativa, a relação entre usuário e objeto pode, inclusive, assumir um caráter intencionalmente destrutivo. Trazem, assim, a defesa da necessidade de se considerar conflitos sócio-culturais no projeto de mobiliário urbano, sabendo que conhecer possíveis interações entre sujeitos e peças no espaço público pode promover ações e perspectivas projetuais voltadas à sua preservação.

 

Em Recomendações para o design de jogos para jogadores com discalculia, um artigo publicado em inglês por Matheus Cezarotto, da Universidade do Estado do Novo México (EUA), o autor traz o tema da acessibilidade em jogos para pessoas com discalculia, que, de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria, é um transtorno de aprendizagem que descreve a dificuldade de aprender conceitos numéricos e de resolver problemas matemáticos. A partir da prática do uso de jogos digitais como forma de intervenção clínica para crianças com discalculia, o autor promoveu uma investigação acerca de aspectos dos jogos que promovem e mantém a motivação dessas crianças no seu tratamento neuropsicológico, possibilitando, assim, que trouxesse uma série de recomendações para o projeto de design de jogos amigáveis a pessoas com o transtorno. Para isso, utilizou três métodos investigativos: pesquisa de campo com desenvolvedores e profissionais do campo da reabilitação neuropsicológica, e observações qualitativas associadas a entrevistas com usuários com discalculia enquanto jogavam games matemáticos.

 

No artigo Design ativismo ou design ativista? Gheysa Prado, da Universidade Federal do Paraná, realiza uma ampla pesquisa bibliográfica, envolvendo desde textos emblemáticos e/ou pioneiros que questionam a atuação “tradicional” do Design até a realização de uma revisão sistemática de literatura. A autora coloca em xeque as terminologias que relacionam os campos de atuação do Design e do ativismo, contribuindo para a definição da área ­­– que é a da busca por uma sociedade mais igualitária por meio do uso do Design para questionar e influenciar práticas culturais e políticas públicas. Como resultado da avaliação dos textos sobre a área, sugere o uso do termo Design Ativismo.

 

O artigo Design Thinking Project Management framework, de Daniel Canfield, da Universidade Federal de Goiás e Maurício Bernardes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, traz uma proposta de complementação do método do Design Thinking com componentes da Gestão de Projetos, gerando o Design Thinking Project Management framework. As cinco etapas que compõem este framework (princípios, papéis, etapas, eventos e ferramentas) visam resolver a superficialidade e simplicidade do método Design Thinking, bem como contribuir para a ampliação da reflexão sobre a relação entre ambas as premissas metodológicas. Para chegar a tal proposta foi empregado um compilado de métodos remota e digitalmente aplicados, indo da entrevista com usuários e especialistas, passando pelo fórum de discussão e chegando na realização de workshops de desenvolvimento do produto, do framework e de sua validação.

 

Censo Demográfico e Paradados: Em Busca da Melhor Experiência para o Usuário é um artigo de Patricia Tavares (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e IBGE), Luiz Agner (IBGE e Faculdades Integradas Helio Alonso) e Simone Ferreira (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). O artigo descreve uma pesquisa de doutorado voltada à avaliação da experiência do usuário no preenchimento de questionários online, em especial os censos demográficos. O foco foi nos paradados, conceito advindo da pesquisa estatística e que descreve o uso de dados relativos à coleta e administração da própria pesquisa ­­– no caso, de questionários­ –, investigando se eles indicam inconsistências no próprio instrumento de coleta. Para tal, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o emprego dos paradados, sendo possível concluir que eles podem ser uma ferramenta de avaliação da experiência do usuário em pesquisas censitárias na web.

 

Em Design é coisa de veado: estratégias para o desenho de uma plataforma digital para memórias sexo e gênero dissidentes, Guilherme Altmayer, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e Leno Veras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trazem reflexões importantes à criação da tropicuir.org, uma plataforma para o registro de narrativas e manifestações estético-políticas bixas, sapas, lésbicas, trans e travestis. Para isso, conjugaram teoria queer com reflexões teóricas sobre a criação de acervos, confluindo em questionamentos das dimensões normativas, éticas e políticas que a práxis do Design cristaliza em seus artefatos, e em demandas para que o campo consiga se articular a memórias e vivências tradicionalmente obliteradas.

 

O artigo O mobiliário de Anna Maria Niemeyer para Palácio da Alvorada, de Fernanda Torres e Frederico Ferreira, do Instituto Federal de Brasília, traz significativa contribuição para o resgate da memória do mobiliário original e exclusivo usado na residência presidencial brasileira nos anos 50 e 60, com ênfase nos numerosos artefatos projetados por Anna Maria Niemeyer, o que consequentemente contribui com o registro da prática projetual de mulheres brasileiras, frequentemente negligenciada. A pesquisa contou com uma exploração e descrição dos bens móveis por meio de visitas in loco, da análise de documentos, registros e inventários em arquivos públicos e revistas de época e, também, pela pesquisa de autoria e estilo do mobiliário.

 

A estruturação de um método para a criação de fontes de texto: uma proposta direcionada ao ensino do design de tipos é um artigo de Luiza Falcão, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Isabella Aragão e Solange Coutinho, ambas da Universidade Federal de Pernambuco e descreve um método que pode facilitar o ensino de design de fontes de texto. O método, que foi elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e de entrevista com designers de tipo brasileiros, é composto de 11 etapas organizadas nas fases de briefing, design e produção. Nele, propõe-se a criação de uma fonte de texto considerando aspectos objetivos e subjetivos que serão traduzidos no desenho tipográfico.

O artigo Design de recursos educacionais digitais bilíngues: um modelo para avaliação e checklist de apoio, publicado em inglês por Laíse de Moraes (Instituto Federal de Santa Catarina) e Berenice Gonçalves (Universidade Federal de Santa Catarina), se ocupa dos Recursos Educacionais Digitais bilíngues, mídias digitais usadas para a educação de alunos surdos. O grande desafio desse tipo de projeto está em conciliar as linguagens Libras e português dando suporte ao texto e à interpretação sem sobrecarregar os usuários. As autoras trazem uma proposta de modelo para avaliação desses artefatos digitais pois, apesar de sua vasta produção, observaram haver pouca literatura sobre a avaliação e seleção desses materiais.

 

Vendo pelo toque: contribuição do Design Inclusivo na formação de imagens mentais, é um artigo de Márcio Guimarães, da Universidade Federal do Maranhão, e de Mônica Moura e Cassia Domiciano, da Universidade Estadual Paulista ­– Bauru. Aborda os livros infantis adaptados à percepção tátil de leitores com deficiência visual, ressaltando sua importância para o desenvolvimento infantil. O pesquisador e as pesquisadoras combinam dois métodos qualitativos, primeiro conduzindo a interpretação de imagens de livros disponíveis no mercado e depois adaptando artesanalmente materiais de apoio à leitura. Enfim, são apresentadas prescrições para a promoção da autonomia infantil na interpretação dos elementos pictóricos nos livros infantis.

 

Por fim, Práticas criativas contemporâneas: a teoria psicanalítica e suas contribuições para o processo de mediação empreendido pelo designer, de Luiza Machado e Ana de Oliveira, da Universidade de Brasília, traz aprimoramentos à prática do Design, em particular à etapa de conceituação, a partir de reflexões advindas da Psicanálise. A correlação se dá porque é nessa etapa do projeto de design em que ocorre a análise dos atributos simbólicos do processo, enquanto que a psicanálise lacaniana é conhecida por sua relação com a linguagem enquanto sistema simbólico. Assim, após a análise de cinco metodologias de design gráfico enfocando nas práticas relacionadas ao processo de conceituação e de uma investigação bibliográfica sobre possíveis contribuições da psicanálise lacaniana, as pesquisadoras trazem contribuições do processo de escuta psicanalítica à análise da dimensão simbólica em projetos de design.

 

 

Renata Cadena


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Revista Estudos em Design, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, ISSN Impresso: 0104-4249, ISSN Eletrônico: 1983-196X

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