Editorial
Resumo
Prezado leitor,
Momentos de crise são oportunidades para reflexão, aprendizado, crescimento, mudança e resistência, mesmo quando eles apresentam desafios nunca experimentados, trazem sofrimento e impõem limitações, como a grave situação de pandemia por que passamos, acrescida pela desvalorização da pesquisa e do conhecimento científico em nosso país.
Em circunstâncias como esta, mais importante se torna ainda o papel do design na problematização da multifacetada realidade experimentada pelos diferentes indivíduos e coletivos que compõem nossa sociedade, em seus diversos contextos, necessidades, anseios e visões de mundo; assim como na busca e proposição de soluções adequadas, que apontem para um futuro mais digno, justo, equilibrado e que ofereça melhores oportunidades de bem-estar, participação e regeneração de contextos de vida para todos. Entretanto, sem o suporte de uma investigação comprometida, apoiada em referenciais teóricos coerentes; sem métodos científicos e ferramentas adequados para levantamento e análise de dados; sem a troca de experiências e interação entre pesquisadores e, sobretudo, sem a difusão criteriosa do conhecimento produzido dessa forma, o risco de se trilhar caminhos equivocados aumenta muito.
Neste contexto, tem sido ainda mais fundamental e estratégico o papel da Revista Estudos em Design, há mais de 25 anos à frente da difusão da pesquisa em design no Brasil. Atuando ao mesmo tempo como um espelho de boa parte de nossa melhor produção de conhecimento científico, e como um farol que nos aponta direções e perspectivas, tem nos permitido perceber novas ênfases e preocupações que se delineiam no campo, novos conceitos e temáticas, novas interfaces, métodos e abordagens, novos materiais e processos, assim como reconstituições de fragmentos significativos da história relacionada.
Nesta segunda edição do ano de 2021, chama muito a atenção a quantidade de artigos que trazem como ênfase o olhar sobre o usuário (a metade) em diferentes condições e contextos, e sob diversas perspectivas, evidenciando a centralidade do humano na pesquisa em design, seja voltada ao estudo de sua movimentação pelo espaço público ou privado, de peculiaridades ou limitações decorrentes de sua faixa etária, de suas condições de percepção e desenvolvimento ou de processos de aprendizagem. Aspectos da história do design, por sua vez, concentram o enfoque de três artigos, o primeiro voltado à tipografia, o segundo à atuação de artistas plásticas em interação com o design, e o terceiro, na trajetória de um artista gráfico e caricaturista em interação com o cinema e a imprensa. Ainda com relação às temáticas, a questão da sustentabilidade em sua relação com a materialidade, a cultura e o território constituem o tema central de um artigo, e o ativismo político do design no contexto da pandemia em nosso país, concentra o objeto de investigação de outro.
Outro aspecto que merece ser mencionado em relação a esta edição diz respeito à autoria dos artigos, todas coletivas, tendo ao menos dois autores. Quão importante tem sido o diálogo e a produção do conhecimento em grupos de pesquisa em nossa área!
Apesar das condições adversas, percebe-se o quanto as redes de conhecimento permanecem vivas e atuantes, muitas vezes envolvendo pesquisadores de universidades de diferentes regiões do país e mesmo do exterior, trabalhando de forma cooperativa.
Finalmente, vale mencionar que se observa a busca por uma maior explicitação e sistematização dos métodos e procedimentos adotados nas pesquisas, de modo a deixar evidente o percurso realizado, a fundamentação das escolhas e os recortes adotados.
Além disso, começa a sobressair o emprego de ferramentas digitais de apoio à coleta e análise de dados, seja pela difusão das novas tecnologias, maior familiaridade com elas entre os pesquisadores, ou como alternativa em função do distanciamento social imposto pela pandemia.
A seguir, um breve comentário sobre cada uma das contribuições aqui reunidas.
No primeiro artigo, “Identificando a origem de fontes tipográficas a partir de um catálogo de tipos: o repertório do Specimen de Tipos da Tipografia Hennies Irmãos”, Jade Samara Piaia e Priscila Lena Farias, da Universidade de São Paulo, trazem uma significativa contribuição à reconstituição da história da tipografia em nosso país, analisando o repertório tipográfico de uma oficina fundada em 1891, em São Paulo, por imigrantes alemães. Aplicando métodos que possibilitam o rastreamento das fundidoras originárias das fontes utilizadas, à análise de um catálogo produzido pela empresa, as autoras conseguem demonstrar que grande parte das fontes por ela utilizadas, tinha como origem a Alemanha.
Já o artigo “Avaliação das propriedades tecnológicas das madeiras maranhenses voltadas para a fabricação de violões”, de David Guilhon, Karoline Monteiro Guimarães e Anna Karen Lima Lourenço, da Universidade Ceuma, analisa as propriedades de 23 madeiras locais disponíveis no Estado do Maranhão, em relação às exigências de cada parte que compõe o instrumento musical. Diante do problema da escassez de madeiras adequadas à sonoridade requerida pelo violão, novas perspectivas de projeto para o segmento são apontadas, mais compatíveis com os requisitos de sustentabilidade, além de possibilitar diferentes composições estéticas.
Um estudo internacional, redigido em inglês, desenvolvido entre pesquisadores da Universidade de Santa Maria/Brasil, Chiba University/Japão e N.T.T Facilities/Japão, por sua vez, direciona a abordagem para o projeto na escala urbana: “A percepção de fachadas verdes e seus efeitos em usuários de espaços públicos”. Com foco no usuário, utilização de ambientes virtuais imersivos, métodos exploratórios estatísticos e escalas de avaliação, o artigo investiga como diferentes usuários avaliam as fachadas “verdes” do ponto de vista da melhoria do espaço público, além do efeito de diferentes composições formais e de coloração em sua percepção.
Outro trabalho colaborativo, também com foco no usuário, neste caso voltado ao projeto de arquitetura e a um indivíduo bastante especial, é apresentado no artigo “Arquitetura sensível ao autista: quais diretrizes de projeto adotar?”, de autoria de Helena Rodi Neumann e Larissa Akemi Miyashiro, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e de Larissa Victorino Pereira, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. A partir de uma fundamentação teórica que aborda a percepção do espaço pelas pessoas em geral e pelo público tratado em particular, as autoras fazem uma revisão bibliográfica de soluções projetuais benéficas indicadas por terceiros e analisam duas edificações projetadas com este enfoque, uma em São Paulo e outra em Campo Grande. Produzem, ao final, uma tabela com uma síntese de diretrizes e orientações para o projeto de espaços voltados ao público autista.
O quinto artigo desta edição, “Espaços de formação e circuitos profissionais no design por meio das trajetórias de Irene Ruchti e Fayga Ostrower”, de Ana Julia Melo Almeida e Maria Cecília Loschiavo dos Santos, da Universidade de São Paulo, assim como o primeiro artigo, volta o olhar para a história do design em nosso país, entretanto com foco na produção mais próxima ao design, das duas artistas, nas décadas de 1950 e 1960. Ao considerar suas trajetórias, são investigadas as condições sociais que possibilitaram a elas o acesso aos espaços de formação e prática do design.
“Coleta de dados sobre o usuário do produto de vestuário: identificação de técnicas e ferramentas”, apresentado por Elen Makara e Gisele Merino, respectivamente da Universidade Federal de Santa Catarina e da Universidade do Estado de Santa Catarina (região onde se encontra um dos maiores polos de vestuário do país), traz, com rigor metodológico, uma ampla revisão sistemática de literatura sobre o alvo final da investigação, mais uma vez, o usuário. A partir de 13 pesquisas selecionadas, provenientes de teses e dissertações nacionais, e de artigos científicos internacionais, foram identificados 10 procedimentos mais usuais adotados para coleta de dados sobre o usuário, na fase de planejamento e é ressaltada a importância de se priorizar este aspecto em todas as fases do projeto.
Mais um artigo que direciona o olhar para o usuário do projeto de design, agora tomando como objeto de investigação os interiores residenciais, é “Qualidade visual percebida por idosos em cenas de salas de estar”, elaborado por Marina Holanda Kunst e Lourival Costa Filho, ambos da Universidade Federal de Pernambuco. O ponto de partida dos autores foram as evidências do envelhecimento da população brasileira. Defendendo a importância, para o idoso, da sensação de segurança e bem-estar em sua moradia; e tendo como suporte a Teoria das facetas, o Sistema de Classificações Múltiplas e a Análise da Estrutura de Similaridade, os autores aplicaram um questionário online junto a este público. A pesquisa empírica revelou que cenas de salas de estar tradicionais, com complexidade moderada e vistas desobstruídas influenciam na qualidade visual percebida.
As relações entre ativismo e design no contexto de distanciamento social vivenciado desde 2020 no país, diante da pandemia da COVID-19, são exploradas em “Design ativista em quarentena: uma perspectiva brasileira”. Os autores, José Carlos Magro Jr., Monica Moura e Fernanda Henriques, todos da UNESP, analisam os efeitos dessa situação, como a ampliação das desigualdades sociais e observam o surgimento de iniciativas que discutem e criam alternativas de solução para o enfrentamento dos problemas. Três casos exemplares onde a prática do design teve papel relevante são analisados, fundamentando a reflexão final sobre a atuação do design na contemporaneidade.
“Fausto Silvério Monteiro, o Fininho: um artista gráfico a serviço do cinema pernambucano do Ciclo do Recife”, de Isabella Ribeiro Aragão e Larissa Constantino Martins de Oliveira, traz mais uma abordagem histórica (ou pré-histórica) do design brasileiro, analisando a trajetória de um dos primeiros artistas gráficos que trabalhou junto ao cinema brasileiro, produzindo cartelas para filmes, já na década de 20. O artigo abrange também a produção deste profissional como caricaturista de periódicos, na mesma época, e reflete sobre sua forma de representar, tanto as cenas dos filmes nas cartelas, como o regionalismo e a modernidade, em sua obra em geral.
O último artigo, por fim, “Contribuição do design para a alfabetização: uma experiência na criação de um jogo com participação da criança”, de Laura Caroline Dias Fernandes e Elizabeth Romani, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e Lorena Gomes Torres de Oliveira, da Universidade de Lisboa, revela mais uma pesquisa realizada em colaboração internacional e coloca também o usuário como centro de atenção. Desta vez, entretanto, a investigação transita em torno da educação, da criança e do design colaborativo, apresentando e discutindo uma experiência de criação de um jogo voltado à alfabetização. Tomando como referência os procedimentos metodológicos projetuais de Bruno Munari, os modelos criados foram avaliados com a participação de crianças, quanto ao seu interesse e percepção em relação ao jogo. Trata-se de uma contribuição interessante às discussões sobre a aplicação dos métodos de design neste contexto.
Ótima leitura!
Cyntia Santos Malaguti de Sousa
Texto completo:
PDFDOI: https://doi.org/10.35522/eed.v29i2.1205
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Revista Estudos em Design, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, ISSN Impresso: 0104-4249, ISSN Eletrônico: 1983-196X
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